domingo, 19 de janeiro de 2014

Fome

 O homem permaneceu sentado ao lado da sua estante cheia de livros, esperando alguma inspiração para proceder com sua vida, quando, subitamente, Tomi, o menino de tramas loucas, aparecera para dialogar:
  - O senhor tem fome?
 - Estou acostumado com a sensação. – respondeu o homem, indiferente.
- Sua fome é maior que sua vontade de matá-la?
- Minha fome é um signo; um fenômeno. Sinto meu interior remoer e transformar-se como o besouro de Kafka, ou a repulsa de GH, bendita Clarice. Meus ouvidos tapam e posso ouvir minha voz vibrando por cada vértice de meus tímpanos; é como se eu estivesse preso em mim.
 - Por que o senhor não espanta a fome? – Aqui, o garoto estava impaciente, aflito pela pobre alma.
 - É difícil quando se tem uma coisa e ao mesmo tempo surge o incômodo de saciar algo que você não pode deter. Uma constante que penetra sua vida todos os dias; por escolhas erradas, frustrações e perspectivas mal elaboradas. Aqui, a minha alma permanece esfomeada e acaba refletindo em meu corpo, o estágio final, o fado de minha estrada. Não lamento, pois daqui a inspiração renasce; fênix simplória, como os deuses do Olimpo – a fúria de Delfos.
 Enaltecido e intrigado, Tomi achara seu entrevistado um tanto desvairado e de uma sensibilidade sobre-humana, então lhe perguntou:
 - Nos períodos de fome, como consegue coerência para formular suas ideias?
- Enquanto sinto meu estômago mexer, consigo travar inúmeros pensamentos. Poesias, versos, reflexões sobre a vida, sentimentos e até tenho tempo para escrever um livro mental; menos com lógica. Ah, não tenho jeito para as exatas, embora aspire admiração à Física, em especial a Quântica, Geometria e suas raízes. Einstein dizia que um pensador consegue lidar com o caos; acho uma inverdade. Com o tempo, menino, as coisas ficam bagunçadas e a mente não exerce linhas de organização, ainda bem que existem Buda, o Nirvana, Krishnamurti e seus amigos adeptos ao Samyama para consertarem meu interior. Ainda bem!
 Perplexo ao ouvir seus experimentos e sensações, Tomi jogou uma proposta curta:
 - Pelo visto, o senhor tem fome no momento. Tenho algumas coisas para lhe oferecer, podemos dividi-las.
 Com um sorriso inocente, o homem respondeu:
 - Claro, por favor. Caso eu demore mais para comer, chegarei ao estágio do sofrimento e estou evitando esta linha.
 - Sofrimento? – indagado, Tomi perguntou.
- Sim – o homem lamentou – mas vamos encurtar a história, deixe este capítulo para outra vez.
 Quando jantaram, Tomi notou que seu companheiro estava com um ar diferente, exótico e otimista, então suscitou:
 - O senhor está diferente agora. O que houve?
- Minha alma encheu.
- Através de algo tangível, o alimento?
- Pois é. Que estranho as coisas são!
- Entendo. Se sua alma encheu, seu coração..?
- O que tem? – interrompeu – não seja bobo. Meu coração está aqui, independente da situação.
- Nunca vi ninguém atrelar a fome com tamanha sensação.
- A fome tem muitos significados, talvez até seja um pouco inútil enfrentá-la num conceito filosófico, mas geralmente precisamos de algo para nos impulsionar à frente de nossa existência.
- Quando a fome vem, o que você sente primeiro?

- Um peso enorme – olhando distante para o menino, o homem, mais uma vez, suspirou – O peso do mundo.